sexta-feira, 30 de outubro de 2009

ouço apenas a voz que a tudo se refere
sem nada dizer
sem título I

da cólera nunca se fez canção. coda:
as mulheres robustecem-se no talento
que as faz arborizarem-se - o sangue aprende a cantar, fortalece-se
no júbilo da canção -, e tornam-se
de mármore, aprendem a fabricar metais, entusiasmam-se
na destilação dos mistérios, enlouquecem
a partir da cintura, se pisam as pedras quentes com os pés nus, -
o sangue é conduzido para as arcas dos sótãos,
e o corpo, deixasse-o, como se abandona uma casa vazia -,

e o homem, cansado de polir a madrepérola,
pára, e dedica-se ao fabrico de pequenos cestos de vime,
para que o sangue cicatrize (até) nos espaços mais recônditos da memória, -
essa arte de coar água turva e cair a prumo -,
que é sempre em maio que, às mulheres, lhes desagua
a violeta no pulso, enquanto salgam o sangue, e se sagram
ao talento de emudecer lentamente:
sabe, aprendiz sombrio, que
a doença florirá sempre no negrume da mão fechada

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

poema

colho a flor (d)o enigma (d)a brancura
depuro a palavra o rosto

entregue à vertigem do chão

cinjo o som em torno da veia
cingida pelo movimento

sei que os olhos, que o sangue
sei que respiram
a prumo toda a vertigem do gosto

semeio depois a cegueira nas eiras solares
onde as mãos se entregam ao martírio
das sombras, e espero
com o céu sob o pé e as raízes do sangue
no ventre em flor

espero com a cal como irmã

(espero o mundo
sempre no centro do movimento),

o céu é sempre raso
em redor da córnea


da carne
aplainada


nos silos do verão

provo o lume, sinto o aroma
é meu o centro aceso da semente

semear depois: uma arte de perder
o rumo no centro das chamas

as mãos na vidência do espaço
desenham a penumbra

em torno da imortalidade da pele

o olhar como um lugar imóvel
poema de amor
1
se, agora, as ninfas se calam,
e amam, inclinadas no meu sono,
as naus que partem, vertiginosamente,
a tua queda é a minha queda;

se o som é labirinto,
a mão atravessará os espelhos
para colher a flor da cinza
no centro do tímpano

se o anjo é labirinto (hermenêutico),
se trás sempre à tangente da fronte
a ferida aberta do nome, há-de
haver alguém que profira
o verbo certo, e eco de uma sombra
nos silos ao centro do verão

2
sei, ícaro caiu também
com eurídice funda no coração;

então, digo-te:
não caias, que, se cais, eu terei de ficar cego
de excesso de sombra junto ao peito –
terei de percorrer os labirintos cingido pelo lume
em torno do olho e pela risca do sal
em redor do lábio

3
mas, porquê, pergunto-te a ti,
que não ouves o levíssimo
silêncio do anjo, porquê
calar as ninfas, e amar o mar?
porquê, ao escrever o poema entrar
no labirinto das cearas submersas
da lava em plena floração?

porquê o coração avaro, a casa vazia,
as manhãs gastas?

porquê a brancura e o cavalo alado,
e os olhos revirados, e a boca cheia
de sal ou algas?

porquê os ornamentos, o estilo, a figura,
se as casas se abrem
gratuitamente à desmesura dos vendavais
polindo os lábios das ninfas sentadas nos quintais em flor?
porquê a queda num sono raso em torno dos ombros,
e porquê sempre a melodia do silêncio estremecendo
nos recessos sombrios?

porquê o magma pelo peito?
porquê o plasma circunscrito por um meridiano de cal?
porquê a queda dos líquidos,
se as córneas apontam as constelações róseas –
o deus aberto perante a visão –
e o pequeníssimo céu que se retém debaixo do pé
ligado às raízes dos minerais?

porquê as rosas e as casas caladas?

porque o labirinto sonoro das raízes
em torno do ventre,
enquanto uma cidade tróia inteira me arde atrás dos olhos
quando me olhas?

4
porque a medusa acordará finalmente do seu sono de vidro
e haverá de devorar o universo inteiro
com o sal das suas córneas
ateadas no fulcro do movimento
de quem escreve e toca
nos lugares que se não podem tocar,
e porque se ninguém cantar a voz sem nome do anjo
restar-nos-á apenas para celebrar,
entre paredes de lume,
uma levíssima flor de cinza

(nunca ouso perguntar ao poema
o que quer e qual o seu nome)

porque a poética funda-se no seu labirinto,
e, porque, sempre,
nas tardes de rimas ancestrais, descobrimos
o incessante horizonte não nomeado
dos meandros da
palavra palavra