quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Michaux

RUMO AO HOMEM

Um sábio ser, um dia, veio e instruiu-nos a nós, os ignorantes.
Ensinou-nos a falar. Antes só sabíamos cantar.

Foi uma tentação. Com certeza devíamos aceitar. Agora todos sabemos falar, após alguns anos de infância e balbucios. Mas agora já não somos como dantes. Já não é aquele encanto.

Faziam-se coisas. Havia empresas, reuniões, obras, preparações rumo ao futuro. Tínhamos árvores. De quase tudo se ocupava ele. Outrora governava-nos. Não precisávamos de querer, de decidir. Ainda podíamos folgar. Desapareceu, sem conseguirmos perceber.

Agora tudo nos incumbe a nós, e ele deixa andar, já não se interessa.
É como se não desse por nada.

Não foi a primeira vez que ele se desligou.
A seu ver, é certo não sermos aceitáveis, nem sequer muito interessantes. Os nossos pais-predecessores sabiam interessá-lo. Eles sim, sabiam o que se impunha para não ficarem sozinhos, fazendo-o voltar. Nós porém não sabemos, não demos com o meio necessário.

Dantes uma música unia-nos. Uma música que nos fora dada para isso, para a ele voltarmos, para voltarmos ao ser tão importante que podia governar-nos a terra que era nossa. Uma certa música. Essa música, que nos fora legada para ser o elo, voltava a pô-lo em contacto com a gente. Mas foi perdida.

Alguns de nós deixam a tribo para ir viver com os animais selvagens. Nós deixamo-los ir.
Os animais selvagens não os aceitam. Não se deixam enganar por inclinações tumultuosas, por meras intenções.
Deste lado o fosso é grande e largo, um fosso que actualmente não pode ser coberto.

Porque nós não somos animais. Embora de certo modo ainda não sejamos homens perfeitamente. Havemos de sê-lo. Convém não desesperar. Já o fomos. Fomo-lo em tempos recuados. Ao mesmo tempo que esses que hoje em dia nos bosques e na savana inteiramente voltaram a ser animais, mas respeitamo-los. Vedamo-nos vigiar as suas vidas ou indagar seja o que for sobre essas vidas, o que desta ou daquela maneira talvez os humilhasse.
Porque, apesar de termos ficado, quanto a nós, mais de meios-homens sobretudo no aspecto, e por isso à frente dessas vidas, é de recear e é possível que só depois delas de novo nos tornemos homens completos e verídicos. Não se pode saber. Não se pode ter a certeza. Gabar-se a gente disso não cairia bem.
Por enquanto, a quatro patas ou de outro jeito, na floresta, em tocas, elas aguardam o seu longínquo futuro de homens, com grande dignidade, com uma dignidade exemplar.
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PARAGENS BRUTAIS

Ao olhar a grande figura, enterramo-nos. Muitos já estão enterrados. Até onde, isso não sabem: ainda falam.
Os que se destinam a ser colados nas paredes da cidade serão alimentados com detritos. Habituaram-nos a este alimento. Deve bastar-lhes.

Nos baixios da memória, o céu. Restos. Restos de luz cujo emprego ignoramos.

Estamos à espera dos curativos. Vem atrasada a entrega dos curativos.

Vai-se adensando a sujidade.

Máquinas, então. Outras máquinas. Mais máquinas ainda. Havemos de descobrir. A cabeça continua plástica.

Passam ondas: de frio, de medo, de raiva, de impotência, de insubmissão, de incondicional protesto...
Ondas: para irem atracar aonde?

E sempre mais abaixo, procurar na cisterna do corpo.

Época das sagradas latrinas. Os olhares já não vêem as mesmas partes, e os mesmos conjuntos também não.

Por água abaixo. Por água abaixo ou de costas prà parede.

Christus não resistiu ao confronto.

Por cima das cidades as nuvens já não partem. As manhãs não regressam.
Violentamente agitadas as jaulas, mas sempre jaulas.

O Número aumenta.
Uniformemente, o ovo, em miríades, o ovo, as saídas do ovo; família para as necessidades do ovo, cadeia sem fim, manivela proveniente dos desejos. Quantos ovários oferecidos por esse mundo fora!

Os destinos de milhares de milhões de homens. Visíveis por todo o lado, mostrados, outra vez mostrados. A gente segue-os. Toda a gente ferida por toda a gente. Em massa em reservatórios.

Ouvir, ouvir de novo, dever de ouvir, dever de conhecer os acontecimentos.

Quanto ao solitário, por todos há-de ser enlameado.

Estamos aqui, onde não se pode estar sem desaparecer.

Mais alguns dias.

Em redor, máquinas com rodas em acção. Em andrajos coloridos, os últimos nelas montados dão ainda umas voltas.

Alguns caem. Não voltamos a vê-los. Mas ainda sobram. Ainda sobram enormemente.

Os recém-chegados. A nova agitação. A nova explicação. Novos malefícios.

A gritar, agarram-se e agarram-se. Todos, a todo o preço, aparecerem pelo menos uma vez no terraço.

Mal sabem ler e já imperadores. Rebanhos de imperadores.

Véspera de catástrofe. Instalação-mudança a preceder aniquilamento.

Em civilização atrelada, a gaivota e o veado ao mesmo jugo atrelados.

Profundos são os poços para onde somos aspirados; profundos como o mar.

A quantidade terá prevalecido.
Eles gostam de puxar uma corda a que muitos estão agarrados.

A barreira dos sinais retém, a barreira das denominações, a barreira das injunções. Universalidade da norma matemática.
Os que buscam, todavia, encontram, ao avançar, o impensável, cada vez mais o impensável, o inconcebível, o inapreensível indefinidamente.

Acabam-se os refúgios.
Espécie de actividade desmedida, a espécie de crescimento desmedido tudo terá amputado.

A sufocar, onde se entra, a sufocar embora aberto aos ventos todos.

Presença. Hominídea omnipresença. Os seus ruídos, carnívoros dos nervos.
De todo o lado, de milhares de léguas de distância as suas vozes voltam, retumbantes, acabrunhantes, penetrando sem tréguas no interior dos mais retirados aposentos.

Retirar-se. Quem poderia? Da espécie ninguém se evade.

Sobre o homem, sobre qualquer homem se abate a hominalidade.
Vão dar com o solitário, no seu retiro, em si envolto. Ele ouve, ouve-os enquanto reflecte, também ele com homens cava o Mundo.
Se não, como faria?


Tradução de Júlio Henriques
Textos extraídos de Chemins cherchés Chemins perdus Transgressions, Gallimard, Paris, 1981

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