sexta-feira, 31 de outubro de 2008

da "inspiração"

Como se resolve a falta de "inspiração" quando a mão, excessivamente luxuosa, não quer assentar nada sobre o papel?

entra-se no blog habitual e a parafrenália semântica entra em ignição
na tentativa de contrariar o malfadado gerúndio, com o qual se procura
prolongar mais pequeno gesto até ao infinito



o pulmão aéreo respirando a fuligem
das nuvens submersas sobre o peso
do sangue

vermelhos os olhos
junto à raiz do inverno

todo o braço estreitado junto ao peito
em gesto de arco-íris

toda a pele exposta à contingência
do vento

e a veia álgida disposta
em torno de uma pedra,
pronta a abdicar da primavera

hoje a brancura
não me quer para noivo

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Fragmento da Oitava Elegia de Duíno

«Com todos os olhos vê a criatura
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como invertidos e de todo postos à volta dela
como armadilhas, em círculo à volta da sua saída livre.
O que está lá fora, só o sabemos da face
do animal; pois já a criança pequena
nós a voltamos e a obrigamos a olhar para trás
para o mundo das formas, não para o Aberto, que
é tão profundo na face do animal. Livre da morte.
A ela só nós a vemos; o animal livre
tem sempre atrás de si o seu declínio
e Deus ante si, e quando se move, move-se
em Eternidade, como as fontes correm.
Nós nunca temos, nem um único dia,
o puro espaço entre nós, para o qual as flores se abrem infinitamente. É sempre mundo
e nunca nenhures sem não: o puro,
o não-vigiado espaço que a gente respira e
sabe infinito e não cobiça. Em criança
perde-se uma criança dentro dele no silêncio e é
sacudida. Ou outra morre e é-o.
Pois perto da morte já não se vê a morte
e olha-se fixamente lá para fora, talvez com um grande
olhar de bicho.»


(Rainer Maria Rilke;fragmento da oitava Elegia de Duíno, trad. Paulo Quintela)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

sobre a mão

a mão, essa que apenas se toca a si mesma,
essa que exalta os ritos
e opera a ascese vertebral das camélias


dessa mão que constrange os girassóis e as crianças
ao exílio dos espelhos
e as paisagens ao onanismo do olhar
de quem desvia os olhos para ver

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

retrato desfocado após reler a carta do sr chandos

o pé. agora. sobre o pé

outra forma de dizer

o pó
sobre o
o pó

ou a boca junto
a semente de um rio submerso


nos estuários o dia é
sempre o sol
a prumo sobre a água. sobre

alguém que quer ser fecundo
mesmo semeando o sal
no centro da noite
(para contrariar o luto de um pássaro,
que escreve cartas de amor para madagascar)

paráfrase: toda a água é assim
indeclinável, alegórica


eu explico, primeiro desenha-se
um círculo em redor da sede

tenta-se dizer o nome certo
no momento certo


é um talento impossível -
diz alguém

depois, o canto é a voz

com todos os lugares trocados


e ainda um caule de ave
apontado para toda a lonjura
sem horizonte

dir-se-ia, por fim,

que é preciso erguer o pé
de cima do sal semeado
no centro da noite

ou, e por outras palavras,
não mais sábias,

devia ter ouvido o luto do pássaro:

uma alegoria não se presta a isto
é um animal sem vontade

sempre

o corpo todo desarticulado

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

depois de reler as Elegias de Duíno

o que é sublime não se pode ver

é talvez isso tudo

o que haja a aprender
com as coisas visíveis

tivessemos nós outros dedos,
outro sopro
e seria outro o som da flauta

para a eva christina zeller

quem sabe
o destino de um poema

das palavras ama
tão só o silêncio:

as mãos sempre

à tangente do perfume
(para que serve uma sentença
senão para ser sentenciada?)

se o céu é azul e não-azul

falar é apenas

escolher o acto de pousar

levemente

a mão dentro da sombra do lírio

e respirar das rosas a inteira cor
do dia
mas, porque é preciso

acender o poema como se fosse
uma válvula através do relâmpago

(e apesar de se saber)

tantas vezes falta sempre

tanto céu às palavras


não se deve escolher o vidro

apenas

porque o céu está ausente

e a pele é um clarão diante
dos olhos
agora o acto de guardar o céu
sob a unha

algumas palavras
não são para ser ditas

mas que fazer quando o lume
devassa a casa?

a-prumo

toda a veia é uma roldana
em torno do sol
que desponta da mão
dobrada sobre do sal: imagem

alguém sustém o gládio
nos declives da paisagem: uma arte de cair

é alguém que receia
o modo como os nomes
entrançam carne e céu,
pedra e mar: no aprumo

ou o solícito crescimento do pão
nas casas do homens; do lírio

diz-se que o canto eleva vida,
e que a pele amadurece
subitamente ao contacto das amoras,

é alguém que diz: rente à terra
o verão não é uma estação,

é uma coisa que as palavras fazem
do silêncio dos homens

que da vida não conhecem
a água toda redonda

nem a cor do sangue por dentro

nem o sabor do pão
na febre dos lábios

(será que alguém alguma vez soube
que só o mar conhece o mar?)

pequeno exercício

é a tília ateada dentro da pedra (violino)

o perfume dos dedais por usar
como se fossem palavras
à espera do florescimento da pele (harpa)

é uma levíssima hesitação das mãos
em torno de um nome:
algo que se diz
como um rosto no estendal do vento (lira)

não é o branco,
é a cartografia do esquecimento
o que as roupas ocultam sobre a pele (piano)

é por isso que é preciso cantar
como se se falasse com casas vivas
quando nos faltam as palavras (voz)

é por isso que sempre ponho o dedal no dedo
diante dos violinos (poema)

como se entendesse
o motivo porque a raiz da pedra
abdica da do idoma das flores
e o vento fermentado na têmpora (poesia)

tentativa de poema descritivo

se eu digo

(é) um rio que desce
ou uma harpa bordando a carne

e se em redor a cevada
é toda a cor dos teus olhos

sinto depois o tumulto da pétala
sob a unha

e é como se inaugurasse uma canção
que é o sol pousado sobre a mesa

ou uma moeda sobre os olhos

sábado, 11 de outubro de 2008

1

I

por caminhos de lavanda e urze: raso,
o sangue sob a plaina dos dedos,

enquanto a mão aprende
toda a beatitude do mundo


a mão alçada sobre a lua dos olhos,
o gesto é conciso
como uma imagem impossível


II

depois, ameias entre os venenos,
os versos:

carótida, laringe, fuligem, falange


os versos: um secreto combate, os versos

tantas vezes não mais que sombras

entre a luz nocturna da lâmina
e a doçura da pálpebra



III

em verdade falo apenas do que há
dentro dos nomes

o que há dentro de um nome?

em verdade falo apenas de um imóvel caminho

um lentíssimo modo de rumar
ao silêncio

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Hölderlin

só tu vês ainda

a rosa
na desmesura
do som

só tu poderás sempre
colher-lhe a pétala
do seu túmulo de ar

(só o teu rosto é
exacto
como se nunca
houvesses existido)

para Hermann Broch

com flor do lume dentro
do sonho aceso

rente à têmpora

o poeta no seu leito
de morte
toca com o dedal de prata
nos olhos dos vivos

para lhes mostrar o lugar onde
primeiro se começa a conhecer
tudo o que (nos) é
comum

poema a-dor-niano (com as preciosidades do costume)

I
já não se pode escrever poemas
para alegrar a vindima dos homens (?)


que de olhos abertos já não se vê(em)

que é imprecisa toda a sombra (da rosa)
que a mão ama através
das dunas cercadas
pela luz do mar

II
já não se pode, diz-se
(nem escrever para se calar)
olhar de frente o silêncio
(nem calar-se para dizer)
e diz-se apenas

que é a tarefa dos homens
não saber não saber
compreender
aquilo que não pode ser
compreendido

sobre paul celan que (segundo "os meninos das anti-aéreas") «lia poemas como se estivesse numa sinagoga»

bem fundo junto
à negra raiz do pó
e por baixo de toda a cinza

lavrada

uma palavra floresce
na secreta demora
de um ventre
respirando brancura

(e fuligem)

poema

com a sombra da flor da cerejeira
junto aos lábios, profiro nomes, e atravesso

os rios só de os respirar
com os olhos