Como se resolve a falta de "inspiração" quando a mão, excessivamente luxuosa, não quer assentar nada sobre o papel?
entra-se no blog habitual e a parafrenália semântica entra em ignição
na tentativa de contrariar o malfadado gerúndio, com o qual se procura
prolongar mais pequeno gesto até ao infinito
o pulmão aéreo respirando a fuligem
das nuvens submersas sobre o peso
do sangue
vermelhos os olhos
junto à raiz do inverno
todo o braço estreitado junto ao peito
em gesto de arco-íris
toda a pele exposta à contingência
do vento
e a veia álgida disposta
em torno de uma pedra,
pronta a abdicar da primavera
hoje a brancura
não me quer para noivo
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Fragmento da Oitava Elegia de Duíno
«Com todos os olhos vê a criatura
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como invertidos e de todo postos à volta dela
como armadilhas, em círculo à volta da sua saída livre.
O que está lá fora, só o sabemos da face
do animal; pois já a criança pequena
nós a voltamos e a obrigamos a olhar para trás
para o mundo das formas, não para o Aberto, que
é tão profundo na face do animal. Livre da morte.
A ela só nós a vemos; o animal livre
tem sempre atrás de si o seu declínio
e Deus ante si, e quando se move, move-se
em Eternidade, como as fontes correm.
Nós nunca temos, nem um único dia,
o puro espaço entre nós, para o qual as flores se abrem infinitamente. É sempre mundo
e nunca nenhures sem não: o puro,
o não-vigiado espaço que a gente respira e
sabe infinito e não cobiça. Em criança
perde-se uma criança dentro dele no silêncio e é
sacudida. Ou outra morre e é-o.
Pois perto da morte já não se vê a morte
e olha-se fixamente lá para fora, talvez com um grande
olhar de bicho.»
(Rainer Maria Rilke;fragmento da oitava Elegia de Duíno, trad. Paulo Quintela)
o Aberto. Só os nossos olhos estão
como invertidos e de todo postos à volta dela
como armadilhas, em círculo à volta da sua saída livre.
O que está lá fora, só o sabemos da face
do animal; pois já a criança pequena
nós a voltamos e a obrigamos a olhar para trás
para o mundo das formas, não para o Aberto, que
é tão profundo na face do animal. Livre da morte.
A ela só nós a vemos; o animal livre
tem sempre atrás de si o seu declínio
e Deus ante si, e quando se move, move-se
em Eternidade, como as fontes correm.
Nós nunca temos, nem um único dia,
o puro espaço entre nós, para o qual as flores se abrem infinitamente. É sempre mundo
e nunca nenhures sem não: o puro,
o não-vigiado espaço que a gente respira e
sabe infinito e não cobiça. Em criança
perde-se uma criança dentro dele no silêncio e é
sacudida. Ou outra morre e é-o.
Pois perto da morte já não se vê a morte
e olha-se fixamente lá para fora, talvez com um grande
olhar de bicho.»
(Rainer Maria Rilke;fragmento da oitava Elegia de Duíno, trad. Paulo Quintela)
terça-feira, 28 de outubro de 2008
sobre a mão
a mão, essa que apenas se toca a si mesma,
essa que exalta os ritos
e opera a ascese vertebral das camélias
dessa mão que constrange os girassóis e as crianças
ao exílio dos espelhos
e as paisagens ao onanismo do olhar
de quem desvia os olhos para ver
essa que exalta os ritos
e opera a ascese vertebral das camélias
dessa mão que constrange os girassóis e as crianças
ao exílio dos espelhos
e as paisagens ao onanismo do olhar
de quem desvia os olhos para ver
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
retrato desfocado após reler a carta do sr chandos
o pé. agora. sobre o pé
outra forma de dizer
o pó
sobre o
o pó
ou a boca junto
a semente de um rio submerso
nos estuários o dia é
sempre o sol
a prumo sobre a água. sobre
alguém que quer ser fecundo
mesmo semeando o sal
no centro da noite
(para contrariar o luto de um pássaro,
que escreve cartas de amor para madagascar)
paráfrase: toda a água é assim
indeclinável, alegórica
eu explico, primeiro desenha-se
um círculo em redor da sede
tenta-se dizer o nome certo
no momento certo
é um talento impossível -
diz alguém
depois, o canto é a voz
com todos os lugares trocados
e ainda um caule de ave
apontado para toda a lonjura
sem horizonte
dir-se-ia, por fim,
que é preciso erguer o pé
de cima do sal semeado
no centro da noite
ou, e por outras palavras,
não mais sábias,
devia ter ouvido o luto do pássaro:
uma alegoria não se presta a isto
é um animal sem vontade
sempre
o corpo todo desarticulado
outra forma de dizer
o pó
sobre o
o pó
ou a boca junto
a semente de um rio submerso
nos estuários o dia é
sempre o sol
a prumo sobre a água. sobre
alguém que quer ser fecundo
mesmo semeando o sal
no centro da noite
(para contrariar o luto de um pássaro,
que escreve cartas de amor para madagascar)
paráfrase: toda a água é assim
indeclinável, alegórica
eu explico, primeiro desenha-se
um círculo em redor da sede
tenta-se dizer o nome certo
no momento certo
é um talento impossível -
diz alguém
depois, o canto é a voz
com todos os lugares trocados
e ainda um caule de ave
apontado para toda a lonjura
sem horizonte
dir-se-ia, por fim,
que é preciso erguer o pé
de cima do sal semeado
no centro da noite
ou, e por outras palavras,
não mais sábias,
devia ter ouvido o luto do pássaro:
uma alegoria não se presta a isto
é um animal sem vontade
sempre
o corpo todo desarticulado
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
depois de reler as Elegias de Duíno
o que é sublime não se pode ver
é talvez isso tudo
o que haja a aprender
com as coisas visíveis
tivessemos nós outros dedos,
outro sopro
e seria outro o som da flauta
é talvez isso tudo
o que haja a aprender
com as coisas visíveis
tivessemos nós outros dedos,
outro sopro
e seria outro o som da flauta
para a eva christina zeller
quem sabe
o destino de um poema
das palavras ama
tão só o silêncio:
as mãos sempre
à tangente do perfume
o destino de um poema
das palavras ama
tão só o silêncio:
as mãos sempre
à tangente do perfume
a-prumo
toda a veia é uma roldana
em torno do sol
que desponta da mão
dobrada sobre do sal: imagem
alguém sustém o gládio
nos declives da paisagem: uma arte de cair
é alguém que receia
o modo como os nomes
entrançam carne e céu,
pedra e mar: no aprumo
ou o solícito crescimento do pão
nas casas do homens; do lírio
diz-se que o canto eleva vida,
e que a pele amadurece
subitamente ao contacto das amoras,
é alguém que diz: rente à terra
o verão não é uma estação,
é uma coisa que as palavras fazem
do silêncio dos homens
que da vida não conhecem
a água toda redonda
nem a cor do sangue por dentro
nem o sabor do pão
na febre dos lábios
(será que alguém alguma vez soube
que só o mar conhece o mar?)
em torno do sol
que desponta da mão
dobrada sobre do sal: imagem
alguém sustém o gládio
nos declives da paisagem: uma arte de cair
é alguém que receia
o modo como os nomes
entrançam carne e céu,
pedra e mar: no aprumo
ou o solícito crescimento do pão
nas casas do homens; do lírio
diz-se que o canto eleva vida,
e que a pele amadurece
subitamente ao contacto das amoras,
é alguém que diz: rente à terra
o verão não é uma estação,
é uma coisa que as palavras fazem
do silêncio dos homens
que da vida não conhecem
a água toda redonda
nem a cor do sangue por dentro
nem o sabor do pão
na febre dos lábios
(será que alguém alguma vez soube
que só o mar conhece o mar?)
pequeno exercício
é a tília ateada dentro da pedra (violino)
o perfume dos dedais por usar
como se fossem palavras
à espera do florescimento da pele (harpa)
é uma levíssima hesitação das mãos
em torno de um nome:
algo que se diz
como um rosto no estendal do vento (lira)
não é o branco,
é a cartografia do esquecimento
o que as roupas ocultam sobre a pele (piano)
é por isso que é preciso cantar
como se se falasse com casas vivas
quando nos faltam as palavras (voz)
é por isso que sempre ponho o dedal no dedo
diante dos violinos (poema)
como se entendesse
o motivo porque a raiz da pedra
abdica da do idoma das flores
e o vento fermentado na têmpora (poesia)
o perfume dos dedais por usar
como se fossem palavras
à espera do florescimento da pele (harpa)
é uma levíssima hesitação das mãos
em torno de um nome:
algo que se diz
como um rosto no estendal do vento (lira)
não é o branco,
é a cartografia do esquecimento
o que as roupas ocultam sobre a pele (piano)
é por isso que é preciso cantar
como se se falasse com casas vivas
quando nos faltam as palavras (voz)
é por isso que sempre ponho o dedal no dedo
diante dos violinos (poema)
como se entendesse
o motivo porque a raiz da pedra
abdica da do idoma das flores
e o vento fermentado na têmpora (poesia)
tentativa de poema descritivo
se eu digo
(é) um rio que desce
ou uma harpa bordando a carne
e se em redor a cevada
é toda a cor dos teus olhos
sinto depois o tumulto da pétala
sob a unha
e é como se inaugurasse uma canção
que é o sol pousado sobre a mesa
ou uma moeda sobre os olhos
(é) um rio que desce
ou uma harpa bordando a carne
e se em redor a cevada
é toda a cor dos teus olhos
sinto depois o tumulto da pétala
sob a unha
e é como se inaugurasse uma canção
que é o sol pousado sobre a mesa
ou uma moeda sobre os olhos
sábado, 11 de outubro de 2008
1
I
por caminhos de lavanda e urze: raso,
o sangue sob a plaina dos dedos,
enquanto a mão aprende
toda a beatitude do mundo
a mão alçada sobre a lua dos olhos,
o gesto é conciso
como uma imagem impossível
II
depois, ameias entre os venenos,
os versos:
carótida, laringe, fuligem, falange
os versos: um secreto combate, os versos
tantas vezes não mais que sombras
entre a luz nocturna da lâmina
e a doçura da pálpebra
III
em verdade falo apenas do que há
dentro dos nomes
o que há dentro de um nome?
em verdade falo apenas de um imóvel caminho
um lentíssimo modo de rumar
ao silêncio
por caminhos de lavanda e urze: raso,
o sangue sob a plaina dos dedos,
enquanto a mão aprende
toda a beatitude do mundo
a mão alçada sobre a lua dos olhos,
o gesto é conciso
como uma imagem impossível
II
depois, ameias entre os venenos,
os versos:
carótida, laringe, fuligem, falange
os versos: um secreto combate, os versos
tantas vezes não mais que sombras
entre a luz nocturna da lâmina
e a doçura da pálpebra
III
em verdade falo apenas do que há
dentro dos nomes
o que há dentro de um nome?
em verdade falo apenas de um imóvel caminho
um lentíssimo modo de rumar
ao silêncio
sexta-feira, 3 de outubro de 2008
Hölderlin
só tu vês ainda
a rosa
na desmesura
do som
só tu poderás sempre
colher-lhe a pétala
do seu túmulo de ar
(só o teu rosto é
exacto
como se nunca
houvesses existido)
a rosa
na desmesura
do som
só tu poderás sempre
colher-lhe a pétala
do seu túmulo de ar
(só o teu rosto é
exacto
como se nunca
houvesses existido)
para Hermann Broch
com flor do lume dentro
do sonho aceso
rente à têmpora
o poeta no seu leito
de morte
toca com o dedal de prata
nos olhos dos vivos
para lhes mostrar o lugar onde
primeiro se começa a conhecer
tudo o que (nos) é
comum
do sonho aceso
rente à têmpora
o poeta no seu leito
de morte
toca com o dedal de prata
nos olhos dos vivos
para lhes mostrar o lugar onde
primeiro se começa a conhecer
tudo o que (nos) é
comum
poema a-dor-niano (com as preciosidades do costume)
I
já não se pode escrever poemas
para alegrar a vindima dos homens (?)
que de olhos abertos já não se vê(em)
que é imprecisa toda a sombra (da rosa)
que a mão ama através
das dunas cercadas
pela luz do mar
II
já não se pode, diz-se
(nem escrever para se calar)
olhar de frente o silêncio
(nem calar-se para dizer)
e diz-se apenas
que é a tarefa dos homens
não saber não saber
compreender
aquilo que não pode ser
compreendido
já não se pode escrever poemas
para alegrar a vindima dos homens (?)
que de olhos abertos já não se vê(em)
que é imprecisa toda a sombra (da rosa)
que a mão ama através
das dunas cercadas
pela luz do mar
II
já não se pode, diz-se
(nem escrever para se calar)
olhar de frente o silêncio
(nem calar-se para dizer)
e diz-se apenas
que é a tarefa dos homens
não saber não saber
compreender
aquilo que não pode ser
compreendido
sobre paul celan que (segundo "os meninos das anti-aéreas") «lia poemas como se estivesse numa sinagoga»
bem fundo junto
à negra raiz do pó
e por baixo de toda a cinza
lavrada
uma palavra floresce
na secreta demora
de um ventre
respirando brancura
(e fuligem)
à negra raiz do pó
e por baixo de toda a cinza
lavrada
uma palavra floresce
na secreta demora
de um ventre
respirando brancura
(e fuligem)
poema
com a sombra da flor da cerejeira
junto aos lábios, profiro nomes, e atravesso
os rios só de os respirar
com os olhos
junto aos lábios, profiro nomes, e atravesso
os rios só de os respirar
com os olhos
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