terça-feira, 26 de maio de 2009

o sol em sustenido
sob a pauta d'água

a dupla morte do silêncio

tudo aquilo que se diz diz-se

duas vezes

sexta-feira, 22 de maio de 2009

como em bach, também assim no amor

música, bach:

um carpinteiro
esculpindo anjos de perfil
numa pauta de in-verso/inverno

(quem escreve, é também como se
assistisse ao súbito contágio melódico
das síladas inventadas tão-só para deleite das mãos)

louco de pianos
semeado pela boca
às teclas

tudo se aprende apenas por deleite

como uma levíssima criança silábica

pedem-se emprestadas as bocas
outrora, e para sempre, dos outros
enlevadas no ritmo

bocas (com) que

é preciso atravessar

esse calor inteiro
essa combustão
nas grutas

e isto faz-se assim

umas vezes ou
meta- ou
outras vezes por dentro

isto faz-se sempre por onde o perfume
mais abrasa a língua

nunca houve outra forma
de escalar a infância
senão pelo som

diria o outro: isto faz-se por música

e, não fosse antes já o som enredado nos pés,
isto far-se-ia assim levissimamente

não fosse absolutamente necessário

chegar ao fim do caminho para
começar

como em bach, também assim no amor

breve ensaio para poema de amor

da rosa quero apenas
o perfume atravessando
a penumbra dos dedos

que

caules são coisas para plantar
nas casas,
para dizer a pretexto de

para dizer que soçobra sempre
depois dos olhos
a mais extrema doçura
colhida nas ânforas

ora, vejamos, pois bem: "o pretexto
deforma a expressão"


mas começa-se sempre por querer
sem saber

as mãos aflitas
sobre a roupa
desatentas ao perfume
a boca debruçada sobre o aroma

começa-se sempre por dizer
o que não se sabe: cisternas
abertas dentro do verão
esses gestos de tão-só disseminar odores

para ver que o poema impõe
a expressão como ordálio do pretexto

não há deus mais justo
que aquele que nos dá:

os gestos contornados pelo sabor
e depois toda queda mais sombria

ordálio:

da rosa, quero apenas não falar de mim
de mim, quero apenas a pele, e o aroma

do poema quero apenas
a justeza perfeita de falar
com toda a voz dos outros

e, do amor quero apenas a rosa
sem pretexto

aquele gesto que desponta da floração

do sal,

e tudo aquilo que dizemos
sempre sem saber

quinta-feira, 21 de maio de 2009

para o Herberto Helder

campânulas de vidro desenhado
sobre o vidro, de vidro

(e dentro das casas)
o vento norte entre
a espada e a parede

a mão entre a lavra da cal
e a doçura do silêncio

e de vidro a boca pouca louca
para tanta água

de vidro sempre
a veia a pretexto do sangue

campânulas
transparente ciência infusa

e brilha também ao alto
o sangue nos coágulos
na extremidade mais porosa da memória

uma ave-campânula semeada em chão de página

é este todo o acto que obsidia, o acto
de circunscrever odores a precisão melódica
toda a sintaxe erguida a partir

do mármore

ciência sonora do sangue
o fundo poder de adivinhar e dizer
por sangue

campânulas, o som que fazem, e produzem
ao passar por elas adentro
todo o rumor do mundo,
todo o mundo omisso
entre a lavrada terra funda
e a infundida leveza do verso

de vidro de vidro a música, duvido
que haja outra forma de cantar
senão com a mão funda dentro
do sangue
e o astro-lábio habilitado
à síncope melódica

com a mão lavrando campânulas sobre
o vidro eléctrico

os pronomes como
espelhos olhando espelhos
olhados olhos olhados a partir
do omisso centro das imagens

é uma confiança cega, o ritmo

é assim que se perde finalmente um rosto


e diz-se "a mão na pena vale a mão na charrua"

e senta-se a assim, levíssimo, feito tão-só de ar,
num verão de amoreiras em torno do pensamento

convocam-se incêndios em celeiros de amor
porque tudo é sempre devido àquele
que conheceu o mundo

não se lamenta nenhum espelho

e pensa-se em campânulas com o sangue do avesso

do mundo, pensa-se em árvores semeadas
sobre a lavra do pó

pensa-se em poemas, acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer

acredita-se no puro movimento das palavras,
como se

incêndios de aves rodeassem

in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano

e mente o tímpano que ouve a/à distância

"todo o anjo é terrível"

e descobre-se que é preciso tão-só
plantar as coisas no vento: campânulas

para que o pássaro de boca do poema
possa sempre acompanhar
a cega floração do sal

campânulas os poemas assim escritos
no contágio de lume e ave

e, de vento os poemas: som, som, som
som, habilitado à travessia do odor

sim, corpos gestos: o odor deslocado no sopro

mãos depois, mãos: o odor colhido

sim, o poema começa sempre pela
abdicação dos olhos

vidro escrito sobre vidro,
apesar de tudo e de nada
"no mundo"

domingo, 10 de maio de 2009

filologia

a imagem expõe
a carne lírica dobra o corpo
sobre a extensão do oráculo

a dança é azul, mostra
a lua sobre a pele dos ombros da pítia
prostrada diante do altar entoando
os cânticos sagrados

o êxtase é um ofício cutâneo: filologia

a voz desloca-se do centro para a periferia
das paisagens, é a melodia do lume
devorando a madeira
de um corpo que se abre à desmesura,

que mostra a carne dobrada sobre
o ausente rosto do mito

este verbo de que o corpo é espelho
é a medusa que devora as imagens
e promove o desvio do lume através
do que não se pode ver

o êxtase é a forma corporal do poema,
se a mão toca subitamente o esse rosto
que nunca se vê

esse corpo puramente cutâneo
que se expõe à filológica ascese do nervo
e que abdica da veia para dizer o verídico rosto
da noite caindo sobre as paisagens do homens

quinta-feira, 7 de maio de 2009

clair de lune

a lua no eixo do olhar que olha
e anseia por rosas nas clareiras onde
o verbo se amplia, e, na sede, é
a madeira em flor desde os nódulos dos dedos

é o verbo elevando-se na angariação dos ritos
são os altares lavados, os objectos,
cada um e todos santificados, se nomeados

o poema deve abordar directamente
o seu único objecto (tudo)
deve tocá-lo até ao seu húmus, onde
respiram as manhãs sob o conluio das luas

o poema deve pensar-se, digamos,
musicalmente, deve ser
imagem sem imagem: tempo irresoluto, implacável

o corpo irremissível

o mais ínfimo milésimo de segundo:

música de câmara do coração

e
o verbo, que é uma nevralgia em flor
ou a face rubra dos ventos

o poema deve encarnar o epigramático coração
do mito:

e o verbo no vórtice das águas, ou o sol
na fronte de um homem que ri
perante as árvores em flor
no esquecimento de todos os lugares

o que também é o poema

(e) tudo o que o poema não é

quarta-feira, 6 de maio de 2009

para Hölderlin

o poeta no duplo desvio da imagem
repetindo o gesto que confirma

a ausência do lugar

quando um corpo se desloca

deixa um rastro de cometa
inscrito no coração das imagens
para que se possa saber

que cada gesto inscreve o duplo

desvio

«a dupla infidelidade» do verbo
na carne

da mão

quando uma paisagem arde
sabe-se que é sempre próximo do coração

que esse fogo se ateia

e que é na voz que ganha fulgor

recordação

lembro-me. é preciso que me lembre. sobretudo.
de quando cantavas
e te erguias desde os alicerces das casas
desde o enorme coração do chão

compreendo agora que o meu trabalho
é expor a metástase de que uma imagem é capaz
e a ascensão das luas de dentro dos púcaros
à janela. é minha a tarefa

de explicar o coração dos pássaros
e a sombra semeada no coração dos homens
e as pontas dos dedos queimadas de guiar meteoros

devo ser capaz de dizer tudo. dar forma
a tudo. imitar a água e o vento
devo ser capaz de distribuir
a promessa dos dilúvios
e suportar o peso de todos os prodígios
e devo ainda sorrir perante as árvores
carregadas de frutos, perante a melopeia das casas

mas recordo-me sobretudo de quando chegavas.
nesse tempo eu era jovem
e os meus anos incontáveis.
hoje, quando me deparo com a distância
que essa voz me abre, não consigo deter-me no movimento. ardo.
em elipse. desde o olhar erguido à altura das janelas
até aos tornozelos onde tenho o coração.
tão raso como as lages da madrepérola
onde antes te deitavas, branca e branca
e eu sem voz para te dizer

Alejandra Pizarnik

Caminhos do espelho

E sobretudo olhar com incidência. Como se nada se passasse, o que é certo.
Mas a ti quero olhar-te até estares longe do meu medo, como um pássaro no limite afiado da noite.
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente esbatido pela chuva.
Como quando se abre uma flor e se revela o coração que não tem.
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona no umbral.
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e afugenta a menina que foste.
A nossa noite dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos fritos
E a sede, a minha memória é de sede, eu em baixo, no fundo, no poço, bebia, recordo.
Cair como um animal ferido no lugar de hipotéticas revelações.
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Dentro o vento. Tudo fechado e o vento dentro.
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há alguém aqui que treme.
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem.
E o que desejava eu?
Desejava um silêncio perfeito
Por isso falo.
A noite parece um grito de lobo.
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui á procura de quem sou. Peregrina, avancei em direcção àquela que dorme num país ao vento.
A minha queda sem fim na minha queda sem fim onde inguém me esperava pois ao descobrir quem me esperava outra não vi senão a mim mesma.
Algo cai no silêncio. A minha palavra foi eu embora me referisse à aurora luminosa.
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.
Deslumbramento do dia, pássaros na manhã. Uma mão desata as trevas, arasta a cabeleira da afogada que não cessa de passar pelo espelho. Volto à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que a minha voz diz.

Alejandra Pizarnik

terça-feira, 5 de maio de 2009

questões (s)em questão

haverá alguém que (me)
saiba amar em toda a
exorbitante melancolia
e desregrada necessidade de espaço

haverá alguém que sinta
os (meus) olhos quando eles não estão lá
que (me) beije as veias enquanto
sonho sonho com o florescer das
amoreiras numa estação desabitada

alguém que me impeça de ver no fundo
das ânforas sempre
o fim do mundo

a exclusão é um desesperado desejo de presença

o verdadeiro amor é impessoal

segunda-feira, 4 de maio de 2009

o meu Finnegan's Wake privado, ou o procedimento número um para evitar o impossível

(eu) o se dos labirintos, da lira
da violeta
esticada através da carne arpejada das ilhas, se
a mulher se e(n)leva em vasos de parábolas
e é um começo redondo, e se
perde o corpo a recitar-se
às aves nas quedas, se
a criança tem mãos de vidro e passa
através dos objectos, e
um corpo se extingue
como uma boca sobre o branco, e é lívida:
a carne de água soprada da mulher, se
a brisa atravessando as horas
solares dos lírios te arrepia
a veia até à gengiva
do canto, se cantas com machados nas clareiras
nos meios dias, se és


um corpo a prumo no naufrágio esmaltado da mulher, se
um espelho é um arame que te atravessa
o corpo todo, se os seixos deliram
o lume do verbo, se


desaguas nesse amor pelos tornozelos, se
estancas o espectro sonoro do poema na aurora eninfada
do pulso, se és
uma cassiopeia, uma melopeia de espectros, mulher, (eu) se te percorro
as artérias todas com um sopro,

e morresse rente ao tímpano de barco ou espelho
desse deus, o derradeiro pôr-do-sol
dos lagos, se o se
não tivesse
(mais) se, e um corpo pudesse ser,
completo, e a quilha da veia não se prendesse ao vento dos espelhos no abismo, se

Sibelius, violin concerto em D menor, Op. 47 (primeira tentativa falhada)

dizia a profecia que a mulher haveria
de soprar na pedra até que as jóias
entrassem em flor entre os joelhos
que,

haveria de soprar na têmpora do amante, até
que ele se fendesse pelos joelhos,
e que

deus haveria habitaria a febre inteira
da carne
e o jejum dos frutos

e dos rios


no pranto dos nenúfares e dos amantes,

rente à sede dos/de arames dos braços teus,

o poema cumpre a promessa e os desígnios
dos ritos, cumpre

a mulher e a veia,
iluminada de janelas de janelas até ao pescoço

carne que sonha,
as mãos desse deus oficiando um início exilante, no

fulcro imóvel do solstício, quando os frutos
renunciam à eternidade e lavam

e levam os ventres das mães ao cume
das estrelas, pétalas longe:

os estilhaços da profecia, sementes de mão de deus
quando se inunda pelo pulso, pela boca

que haveria de habilitar a terra, a terra
à fecundação do plasma, à inevitabilidade da

artéria irrigando as casas, e o círculo do oráculo
elipse de deus, que se oculta nas evidências

NOVO DISCO DO SR. DYLAN

FANTÁSTICO, HÁ MUITO TEMPO QUE ESTE RAPAZITO NÃO FAZIA ALGO TÃO BOM

OUVIR A FAIXA: 09 Bob Dylan - I Feel A Change Comin' On

a ver, absolutamente

Le Diable Probablement, de Robert Bresson