quinta-feira, 21 de maio de 2009

para o Herberto Helder

campânulas de vidro desenhado
sobre o vidro, de vidro

(e dentro das casas)
o vento norte entre
a espada e a parede

a mão entre a lavra da cal
e a doçura do silêncio

e de vidro a boca pouca louca
para tanta água

de vidro sempre
a veia a pretexto do sangue

campânulas
transparente ciência infusa

e brilha também ao alto
o sangue nos coágulos
na extremidade mais porosa da memória

uma ave-campânula semeada em chão de página

é este todo o acto que obsidia, o acto
de circunscrever odores a precisão melódica
toda a sintaxe erguida a partir

do mármore

ciência sonora do sangue
o fundo poder de adivinhar e dizer
por sangue

campânulas, o som que fazem, e produzem
ao passar por elas adentro
todo o rumor do mundo,
todo o mundo omisso
entre a lavrada terra funda
e a infundida leveza do verso

de vidro de vidro a música, duvido
que haja outra forma de cantar
senão com a mão funda dentro
do sangue
e o astro-lábio habilitado
à síncope melódica

com a mão lavrando campânulas sobre
o vidro eléctrico

os pronomes como
espelhos olhando espelhos
olhados olhos olhados a partir
do omisso centro das imagens

é uma confiança cega, o ritmo

é assim que se perde finalmente um rosto


e diz-se "a mão na pena vale a mão na charrua"

e senta-se a assim, levíssimo, feito tão-só de ar,
num verão de amoreiras em torno do pensamento

convocam-se incêndios em celeiros de amor
porque tudo é sempre devido àquele
que conheceu o mundo

não se lamenta nenhum espelho

e pensa-se em campânulas com o sangue do avesso

do mundo, pensa-se em árvores semeadas
sobre a lavra do pó

pensa-se em poemas, acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer

acredita-se no puro movimento das palavras,
como se

incêndios de aves rodeassem

in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano

e mente o tímpano que ouve a/à distância

"todo o anjo é terrível"

e descobre-se que é preciso tão-só
plantar as coisas no vento: campânulas

para que o pássaro de boca do poema
possa sempre acompanhar
a cega floração do sal

campânulas os poemas assim escritos
no contágio de lume e ave

e, de vento os poemas: som, som, som
som, habilitado à travessia do odor

sim, corpos gestos: o odor deslocado no sopro

mãos depois, mãos: o odor colhido

sim, o poema começa sempre pela
abdicação dos olhos

vidro escrito sobre vidro,
apesar de tudo e de nada
"no mundo"

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