sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

prestidigitação

prestidigitação


I

não sei como começou isto de ler

(ou prestidigitar)

o futuro pelo voo das aves,

nem logro discernir o motivo

(e o fim..., e o logro!)

pelo qual metade dos pássaros

se dedicam a tão insigne

e nobilíssima actividade.



escrever, não é isso (especulo? ainda?).

se digo, por exemplo (o fim é o começo)
a especulaçao falha subitamente. muro
de cimento em frente dos olhos (fechados).
pois nada há para especular
naquilo que é pura especulação
(perdão, queria dizer verdade)


II

o certo é que é vê-los,

quais numerólogos em êxtase,

de três em três meses,

viajar da patagónia

a pequim (passando pela patafísica, claro,

porque a barriga também especula)

numa folha de papel sentados num sofá,

ou no dito cujo - do qual com tanto afã querem livrar-se -

e recolher os proveitos

da menstruação das marés

(excessivamente lírico ou notadamente especulativo?;

não importa, os homens nunca entenderam a linguagem

dos pássaros, e prezam-se nos seus afazeres,

e regozijam-se na sua febre em alcunha-los de indígenas).



deduzo portanto que o sr. a. s. tenha razão,

todos os homens aspiram a comer (não deveria

dizer especular?) aquilo

que não plantaram.



ai, e não conseguir eu viver de palavras

na minha opinante forma de (e-)migrar.

(perdão, deveria dizer especular).



o certo é que há quem consiga.

("o futuro é o número, é oráculo o que digo", mas agora,

no centro das praças, já ninguém fala com voz pagã,

nem ninguém sabe o que é isso, e os que sabem,

esses, viram os olhos para outro lado)

esses deixaram de partilhar o pão e vinho,

ou de querer saber o que se passa, que rios correm

ou que ventos sibilam por detrás dos véus

e dentro dos vestidos de verão das garças

(deveria dizer graças?)



III

o certo é que a especulação é universal,

e um pleno direito constitucional

do país dos patos bravos.



há, enfim, os pássaros que não emigram,

que vivem no vertical amor

com a terra rasa em redor da boca.

a esses ninguém ouve.

o estômago dos homens teme a voz

que brota das alturas do voo.



(«Nós que nos arrastamos na mais vil escravatura, sem pai que nos chame, sem mãe que por nós olhe, vindos de nenhum passado, para nenhum futuro avançando, órfão amarrado a órfão, somos
a multidão de todos os servos, forjados numa cadeia sem fim; mas apesar de despojados de um destino, fomos escolhidos pelo destino para a graça de conhecer no iramão o irmão"

Hermann Broch, in A Morte de Vergílio, (vol II, pag. 46)





p.s. tudo o que está entre parênteses (eu gosto mais com e)

neste texto é especulação (de onde, perguntar-me-eis,

vós que nunca ireis

ler este texto, se tudo o que está fora dos respectivos

é verdade). tereis necessariamente que especular, meus caros.

e, se quereis reconhecer um especula-dor, perguntai-lhe se sabe voar
(perdão, escrever)?

* ajuda aos literatos: especulação
s. f.,
acto de especular;
estudo;
investigação teórica, puramente racional;
transacção em que uma das partes abusa da boa-fé da outra;
exploração, burla;
compra em larga escala de mercadorias com o objectivo de as revender mais tarde com um lucro resultante da variação das cotações.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

«O corpo da Luz reluz na visão do corpo,
Esconde o medo e o medo esconde.
Mas ainda aí se está ainda aqui».

um amigo distante
homenagem

ergo-me e, subitamente,
mergulho no/em
êxtse de escrever,

e escrevo -

e o êxtse desaparece.

ergo-me então no êxtase
de esquecer que tinha visto
o êxtase desaparecer -

e esse é o momento
em que ele regressa.


ruy narval

a pianista segue a via do mercúrio, e


as mãos as mãos, são o conhecimento do interior, e

são de mármore, as mãos as mãos


da pianista, as mãos, brancas, habilitam ao conhecimento

do derradeiro espectro, e


são de mármore, as mãos as mãos

da pianista, selectos búzios de mar são


da pianista, as mãos são, da pianista,

da pianista, que é a epiderme e a cal em flor,

as mãos são a

argúcia dos movimentos


da pianista, que é a boca em bruto

(a boca em fruto; e eu , quando entrarei em flor?)


a pianista congrega, reúne

os caudais arteriais do arrepio e o instinto de

estepe do pássaro, harpejo

de céu inteiro à mão do sonho, a pianista retém

a biografia do perfume, o jasmim das horas

salubres, o sopro iniciando o tornozelo da rosa


a pianista acende anjos na palma da mão,

inicia a combustão dos tecidos

e torna-se azul, de tanto olhar o mar ser mulher ou fruto,

a pianista principia a depurada biografia

do mármore, e arma-se em nódulos nas urnas

da íris de deus


constrói equinócios,


a pianista aprende o ofício da

depuração corporal dos metais

e ama, a doçura e a constância das coisas


ama as arcas, onde as mulheres e as deusas

guardam os vestidos


a pianista descobriu como fazer florir o sal


e é a orla de um corpo que arda ou floresça


a pianista senta-se e é os nervos em flor

ruy narval

«Die Kürze

Warum bist du so kurz? Liebst du, wie vormals, denn
Nun nicht mehr den Gesang? Fandst du, als Jüngling, doch,
in den Tagen der Hoffnung,
Wenn du sangest, das Ende nie!

Wie mein Glück, ist mein Lied. Willst du im Abendrot
Froh dich baden? Hinweg ist’s! Und die Erde ist kalt,
Und der Vogel der Nacht schwirrt
Unbequem vor das Auge dir.»




O poema conciso

«Porque és tão curto ? Já não amas, como noutros
Tempos, o cântico ? Nesse tempo , ainda jovem,
Quando em dias de esperança cantavas,
Nunca encontravas o fim.

Como a minha sorte, assim é minha canção. Queres-te
banhar, feliz, no pôr do Sol? Já passou! E a
Terra é fria e o pássaro da noite sibila,
Incómodo, perante os teus olhos. »

Friedrich Hölderlin


(Nesta Ode Hölderlin procura provar a Schiller ser capaz de se exprimir poeticamente numa linguagem concisa. Isto porque F. Schiller lhe havia escrito em carta de 24. II. 1796, que tivesse cuidado com a prolixidade verbal, a qual muitas vezes resulta numa exposição infinita, atrofiando assim os pensamentos mais felizes.)