quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

harold pinter - discurso do nobel

Em 1958 escrevi: “não há uma grande diferença entre aquilo que é real e aquilo que é irreal, nem entre aquilo que é verdade e aquilo que é falso. Uma coisa pode não ser nem verdadeira nem falsa. Pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa.”
Acho que esta afirmação ainda faz sentido e se aplica ainda à exploração de realidade através da arte. Por isso, enquanto escritor defendo esta afirmação. Por isso o defendo enquanto artista. Mas enquanto cidadão não, enquanto cidadão tenho de perguntar: o que é que é verdade? O que é que é falso?”
No teatro, a verdade esquiva-se sempre. Quase nunca a encontramos, mas é forçoso andar em sua busca. A busca é claramente aquilo que guia os nossos esforços. A procura é o nosso trabalho. É muitas vezes no escuro que tropeçamos na verdade, esbarramos com ela, ou vislumbramos uma imagem ou uma forma que parece correspoonder à verdade, mas muitas vezes também acontece não sabermos que o fizemos. Mas a verdade mesmo é que não há nunca uma só verdade que possamos encontrar na arte do teatro. Há muitas. Estas verdades desafiam-se umas às outras, repercutem, reflectem-se, ignoram-se, espicaçam-se, são insensíveis umas às outras. Às vezes, pensamos que temos a verdade de um momento na mão, e ela escapa-se-nos por entre os dedos e perde-se.
Muitas vezes me perguntam como nascem as minhas peças. Não sei dizer. Nem sei resumir nenhuma das minhas peças. Não sei descrever nenhuma. Só sei dizer: foi isto o que aconteceu, foi isto o que disseram, foi isto o que fizeram.
Muitas das peças começaram com uma frase, uma palavra ou uma imagem. À palavra junta-se quase logo uma imagem. Vou dar o exemplo de duas frases que me vieram à cabeça sei lá de onde e a que logo se seguiu uma imagem, a que logo se seguiu eu.
As peças são O Regresso A Casa e Há Tanto Tempo. A primeira frase de O Regresso A Casa é: “Onde é que puseste a tesoura?”. A primeira frase de Há Tanto Tempo é “Escuro”.
Em nenhum dos casos, eu não tinha mais informações.
No primeiro, era evidente que alguém estaria à procura de uma tesoura e estava a perguntar o que lhe fizera alguém que suspeita tê-la roubado. Mas eu, de certa maneira, sabia que a pessoa a quem a pergunta era feira se estava nas tintas para a tesoura ou mesmo para quem lhe fazia a pergunta.
‘Escuro’ achei que era a descrição do cabelo de alguém, o cabelo de uma mulher, e era a resposta a alguma pergunta. Em qualquer dos casos, senti-me obrigado a prosseguir. Isto passou-se visualmente, uma entrada lenta na luz, da sombra à luz.
Quando começo uma peça, chamo sempre A, B ou C às minhas personagens.
Na peça que viria a ser O Regresso A Casa, vi um homem entrar numa sala e fazer uma pergunta a um homem mais novo que estaria sentado num feio sofá a ler um jornal de apostas de cavalos. Tinha a ideia que A seria um pai e B um filho, mas não tinha provas. Isso, no entanto, seria confirmado daí a nada quando B (que viria a ser Lenny) diz a A ( que viria a ser Max), “O pai importa-se que eu mude de assunto? Queria fazer-lhe uma pergunta. Aquele jantar que nós comemos, como é que se chamava a comida? Qual é o nome que o pai dá àquilo? Porque é que não compra um cão? É um cozinheiro de cães. A sério. O pai acha que cozinha para cães.”
Ou seja, a partir do momento em que B chama “Pai” a A, pareceu-me aceitável que fossem pai e filho. Também A é claramente o cozinheiro e a sua arte não é muito apreciada. Quererá isto dizer que não há mãe? Não sabia. Mas, tal como para mim mesmo me disse, os nossos princípios não sabem dos nossos desenlaces.
‘Escuro.’ Uma janela grande. Um céu nocturno. Um homem, A ( que viria a ser Deeley), e uma mulher, B (que viria a ser Kate), sentados a beber. ‘Gorda ou magra?’ pergunta o homem. De quem é que estariam a falar? E nessa altura vejo, de pé, junto a uma janela, uma mulher, C (que viria a ser Anna), iluminada de outra maneira, de costas para eles, cabelo escuro.
É um momento estranho, o momento de criar personagens que nunca existiram até essa altura. Aquilo que se segue é incerto, inseguro, ás vezes alucinante - e às vezes mesmo uma avalanche que não pára. A posição do autor é estranha. Num certo sentido, as personagens não o querem por lá. As personagens resistem, não são de convívio fácil, são de difícil definição. De certa forma, estamos num jogo sem fim com elas, gato e rato, à cabra-cega, às escondidas. E acabamos por ter nas nossas mãos pessoas de carne e osso, pessoas com desejos e com sensibilidade própria, feitas de elementos que já não conseguimos alterar, manipular ou distorcer.
É assim que a linguagem na arte continua a ser uma transacção extremamente ambígua, uma areia movediça, um trampolim, um lago gelado que a qualquer momento pode ceder ao nosso peso, ao peso do autor.
Mas, como disse, a busca da verdade não pode parar. Não pode ser adiada, não pode ser suspensa. Tem de ser afrontada, e logo.
O teatro político tem toda uma outra série de problemas. Tem de se evitar os sermões a todo o custo. A objectividade é essencial. As personagens têm de poder respirar o seu próprio ar. O autor não pode confiná-las nem obrigá-las a satisfazer-lhe o seu gosto ou as preferências e tendências que são as suas suas. Tem de estar preparado para as observar sob uma grande variedade de ângulos, um leque de perspectivas diversas e sem preconceitos, apanhá-las de surpresa, talvez, de vez em quando, mas deixando-lhes a liberdade de seguirem o seu próprio caminho. Nem sempre funciona. E a sátira política, é evidente, não obedece a nenhum destes preceitos, está exactamente no lado oposto, e essa a sua função principal.
Na minha peça Feliz Aniversário, creio ter lançado um grande leque de pistas que nos guiam por uma densa floresta de possibilidades, até me concentrar, no final, num acto de submisssão.
Língua de Montanha não funciona numa escala tão aberta. É brutal, breve e feia. Mas os soldados da peça conseguem divertir-se com a situação. As pessoas esquecem-se que os torturadores se aborrecem facilmente. Precisam de gargalhadas para manter o moral. Isto vimo-lo em Abu Ghraib em Bagdade. Língua de Montanha dura só 20 minutos, mas podia prolongar-se, horas e horas, com o mesmo padrão a repetir-se e repetir-se, hora após hora.
Cinza às Cinzas, por outro lado, parece-me passar-se debaixo de água. Uma mulher que se afoga, a mão dela que emerge das vagas, que cai fora do alcance da nossa vista, tentando alcançar outras mãos, mas sem encontrar ninguém, nem por baixo nem por cima da água, só sombras, refexos. A mulher é uma silhueta perdida numa paisagem que se afoga, uma mulher que não é capaz de escapar ao trágico destino que parecia pertencer apenas aos outros.
Mas tal como eles morreram, também ela morrerá.
A linguagem política, tal como é usada pelos políticos, não se aventura por nenhum destes territórios, dado que, na generalidade, os políticos, naquilo que deles podemos ver com clareza, estão interessados não na verdade mas no poder e na manutenção desse poder. Para manter esse poder, é fundamental que as pessoas continuem ignorantes, que vivam na ignorância da verdade, e até da verdade das suas próprias vidas.Aquilo que nos rodeia é uma vasta tapeçaria de mentiras, sobre a qual nos vamos alimentando.
Como qualquer um de nós sabe, a invasão do Iraque foi justificada pelo facto de Saddam Hussein possuir um grande arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais poderiam ser activadas em 45 minutos, com efeito terrivelmente devastador. Garantiram que era verdade. Não era verdade. Disseram-nos que o Iraque tinha ligações com a Al Quaeda e partilhava a responsabilidade pelas atrocidades ocorridas em Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001. Garantiram que era verdade. Não era verdade. Disseram-nos que o Iraque era uma ameaça para a segurança mundial. Garantiram que era verdade. Não era verdade.
A verdade é uma coisa inteiramente diferente. A verdade tem a ver com o papel que os Estados Unidos julgam ter no mundo e como escolhem encarná-lo.
Mas antes de voltar ao presente, quero ir atrás, até ao passado recente. Quero eu dizer à política externa dos Estados Unidos desde a II Guerra Mundial. Acho que temos a obrigação de analisar este período de forma rigorosa, embora limitada pelo tempo de que aqui dispomos.
Todos sabemos o que aconteceu na União Soviética e em toda a Europa de Leste durante o período do pós-guerra: a brutalidade sistemática, as atrocidades largamente difundidas, a brutal irradicação do pensamento independente. E tudo isso foi amplamente documentado e verificado.
Mas eu defendo aqui que os crimes que os Estados Unidos cometeram nesse mesmo período só superficialmente foram retidos, quanto mais documentados, e é se alguém os reconheceu como crimes. Creio que esta questão tem de ser colocada e que a verdade tem uma relação evidente com o estado actual do mundo. Embora, até certo ponto, condicionadas pela acção da União Soviética, as acções levadas a cabo pelos Estados Unidos no mundo inteiro dão claramente a entender que eles se tinham autorizado uma carta branca para fazer aquilo que queriam.
A invasão directa de um estado soberano nunca foi, de facto, o método preferido da América. Na maior parte dos casos, sempre preferiu aquilo que qualifica como “ conflito de baixa intensidade”. “Conflto de baixa intensidade” quer dizer que há milhares de pessoas que morrem mas mais devagar do que se se lhes atirasse uma bomba para cima. Quer dizer que se lhes infecta o coração do país, que se lhes injecta um tumor maligno e se fica a ver o crescimento da gangrena. Quando o povo se rende – ou é espancado até à morte, o que é a mesma coisa – e que os amigos, os miltares e as grandes empresas, se sentam comodamente no poder, avançam para frente das câmaras e dizem que a democracia venceu. Isto foi um lugar comum recorrente na política externa dos EU nos anos a que me refiro.
A tragédia da Nicarágua é particularmente significativa. Escolho-a aqui como exemplo claro da visão que a América tem do seu papel no mundo, nessa altura como agora.
No final dos anos 80, estive numa reunião na Embaixada Americana em Londres.
O Congresso dos EU ia decidir nessa altura se iria dar mais dinheiro aos Contras na sua campanha contra o estado da Nicarágua. Eu integrava uma delegação que representava a Nicarágua mas o membro mais importante desta delegação era um Padre John Metcalf. O chefe do campo americano era Raymond Seitz (nessa altura numero dois da embaixada, mais tarde, embaixador ele próprio ). O Padre Metcalf disse: “Tenho a meu cargo uma paróquia no norte da Nicarágua. Os meus paroquianos construíram uma escola, um centro de saúde, um centro cultural. Vivemos em paz. Há uns meses atrás uma força dos Contra atacou a nossa paróquia. Destruíram tudo: a escola, o centro de saúde, o centro cultural. Violaram enfermeiras e professoras, massacraram os médicos da forma mais brutal. Actuaram como selvagens. Por favor, peça ao Governo dos Estados Unidos que retire o apoio que dá a esta actividade terrorista.”
Raymond Seitz tinha fama de ser um homem particulamente inteligente, responsável e altamente sofisticado. Era muito respeitado nos círculos diplomáticos. Ouviu, calou-se e depois disse com alguma gravidade: “Padre”, disse ele “ deixe-me eu dizer-lhe uma coisa. Numa guerra, as pessoas inocentes sofrem sempre.” Houve um silêncio glacial. Olhámo-lo nos olhos. Ele nem pestanejou.
As pessoas inocentes, realmente, sofrem sempre.
Até que, por fim, alguém disse: ‘Mas neste caso, as pessoas inocentes são vítimas de uma actrocidade sem nome financiada pelo seu governo, e uma entre muitas. Se o Congresso conceder mais dinheiro aos Contras, haverá mais atrociodades deste género Não é assim? Não ficará o seu governo com a culpa de apoiar crimes de morte e destruição de cidadãos de um estado soberano?’
Seitz imperturbável. ‘ Não creio que os factos referidos demonstrem a vossa asserção,’ disse.
Ao sairmos da Embaixada, um conselheiro americano disse-me que ele apreciava o meu teatro. Não respondi.
Devo lembrar-vos que nessa altura o Presidente Reagan afirmou o seguinte: ‘Os Contras são o equivalente moral dos nossos Pais Fundadores.’
Os EU apoiaram a brutal ditadura de Somoza na Nicarágua por mais de 40 anos. O povo da Nicarágua, liderado pelos Sandinistas, fez cair este regime em 1979, uma arrebatadora revolução popular.
Os Sandinistas não eram perfeitos. Tinham a sua parte de arrogância e a sua filosofia política continha inúmeras contradições. Mas eram inteligentes, racionais e civilizados. Queriam instaurar uma sociedade decente, pluralista, estável. Aboliram a pena de morte. Centenas de milhares de camponeses marginalizados pela miséria viram renascer a esperança. Mais de 100.000 familias tiveram direito a terra. Foram construídas 2.000 escolas. Uma brilhante campanha de alfabetização reduziu a iliteracia até menos de 7%. Foi criada a educação gratuita e o serviço de saúde gratuito. A mortalidade infantil foi reduzida de um terço. A poliomilite foi erradicada.
Os EU acusaram estes feitos de subversão marxista-leninista. De acordo com o governo dos EU, a Nicarágua estava a dar um exemplo perigoso. Se continuasse a estabelecer normas elementares de justiça social e económica, se continuasse a elevar o grau dos cuidados de saúde e educação, se conseguisse atingir uma união social e um auto-respeito nacional, os países limítrofes haveriam de levantar as mesmas perguntas e fazer as mesmas coisas. Em El Salvador, havia, simultaneamente, uma bizarra resistência ao statuo quo.
Falei já de uma “tapeçaria de mentiras” que nos envolve a todos. O Presidente Reagan qualificava a Nicarágua como ‘uma masmorra totalitária’. Isto acabou por ser aceite pelos média – e certamente pelo governo britânico – como um comentário adequado. Não havia, no entanto, traça de esquadrões da morte no governo sandinista. Não havia traça de torturas. Não havia traça de brutalidade militar, sistemática e oficial. Nenhum padre foi assassinado na Nicarágua. Havia mesmo três padres no governo, dois Jesuitas e um missionário Maryknoll. As masmorras totalitárias estavam mesmo ao lado, em El Salvador e na Guatemala. Os EU tinham feito cair o governo democraticamente eleiito da Guatemala em 1954 e estima-se em mais de 200.000 o número de vitimas das sucessivas ditaduras militares.
Seis dos mais eminentes jesuitas do mundo foram traiçoeiramente assassinados na Univesidade de San Salvador em 1989 por um batalhão do regimento Alcatl treinado em Fort Benning, Georgia, EU. Aquele homem particularmente corajoso, o Arcebispo Romero foi assassinado ao dizer missa. Estima-se em 75,000 o número de mortos. Porque é que foram mortos? Foram mortos porque acreditaram que era possível uma vida melhor e que se devia lutar por ela. Essa convicção fez com que fossem acusados de ser comunistas. Morreram porque ousaram questionar o status quo, o interminável horizonte de pobreza, doença, decadência e opressão que foi o que tiveram como direitos ao nascer.
Os Estados Unidos acabaram por fazer cair o governo Sandinista . Demorou uns anos, encontrou uma resistência considerável mas a perseguição económica sem tréguas e os 30.000 mortos acabaram por fazer quebrar a determinação do povo da Nicarágua. Estavam exaustos e a miséria regressara. Os casinos voltaram. A educação e a saúde gratuitas acabaram. As grandes empresas voltaram, vingativas. A “democracia” venceu-
Mas esta “política” não diz apenas respeito ao que se passa na América Central. Foi levada a cabo em todo o mundo. Não tem fim. E é como se nunca tivesse acontecido.
Os Estados Unidos apoiaram e em muitos casos estiveram na origem de todas as ditaduras militares da direita nmo mundo desde o final da II Guerra Mundial. Estou a falar da Indonésia, Grécia, Uruguay, Brazil, Paraguay, Haiti, Turquia, Fiilipinas, Guatemala, El Salvador, e, é claro, do Chile. O horror que os EU fizeram abater sobre o Chile em 1973 não poderá nunca ser expiado nem esquecido.
Ocorreram centenas de milhares de mortes nestes países. Mas ocorreram? E podem ser atribuídas à política externa dos EU? A resposta é sim e que elas são da responsabilidade da política extrena dos EU. Mas nunca o saberíamos.
Nunca nada aconteceu. Nada aconteceu. Mesmo quando estava a acontecer, não aconteceu. Não tinha importância, Não tinha interesse. Os crimes dos EU são sistemáticos, regulares, viciosos, sem remorso mas poucos são os que falam deles. E a responsabilidade é da America. Exerceu uma manipulação de poder mundial a um nivel quase cirurgico ao mesmo tempo que se disfarçava em força do bem universal. É uma hipnose brilhante, esperta, altamente conseguida.
Afirmo-vos que os EU são sem sombra de dúvida quem, neste momento, tem em cena o maior espectáculo do mundo. Poderá parecer brutal, indiferente, desdenhoso e impiedoso mas é inegavelmente muito esperto. Tal como um caixeiro viajante, trabalha por conta própria e a mercadoria com mais saída é a auto-estima. É um vencedor. Ouçam como os presidentes dos EU dizem na televisão “ o povo americano”, como na frase “ Digo ao povo americano que é tempo de rezar e de defender os direitos do povo americano e peço ao povo americano que confie no seu presidente na acção que vai iniciar em defesa do povo americano.
O estratagema é brilhante. A linguagem é realmente usada para obscurecer o pensamento. A expressão “o povo americano” comporta em si uma voluptuosa almofada que nos dá confiança. Não é preciso pensar. Basta aconchegarmo-nos sobre a almofada. Pode ser que a almofada esteja a sufocar a inteligencia e as faculdades críticas mas é tão confortável. Isto, é claro, não se aplica aos 40 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza e dos 2 milhões de homens e mulheres que estão presos no vasto gulag de prisões que se extende ao longo dos EU.
Os EU já não se preocupamm com os confitos de baixa intensidade. Já não vêm qualquer interesse em dar provas de reserva ou sequer de manhas. Atiram para cima da mesa as cartas sem medo. Estão-se realmente nas tintas para as Nações Unidas, a lei internacional ou as críticas, que consideram não ter qualquer poder ou importância. E ainda levam atrás de si, à trela, o pequeno cordeirinho que é a patética e submetida Gra Bretanha.
O que aconteceu com a nossa sensibilidade moral ? Alguma vez a tivemos? O que quer dizer esta expressão? Refere-se a um termo pouco usado nestes dias – consciência? Uma consciência de agir não apenas com os nossos próprios actos mas com a responsabilidade partilhada nas acções dos outros? Já tudo isto morreu? Olhe-se para a Baía de Guantanamo. Estão lá centenas de pessoas presas sem acusação, há mais de três anos, sem representantes legais, tecnicamente em prisão perpétua. Esta estrutura totalmente ilegítima é mantida à revelia da Convenção de Genebra. E é tolerada ou vista como se não existisse por aquilo a que se chama “a comunidade internacional”. Este crime escandaloso está a ser perpetrado por um país que se intitula “ defensor do mundo livre”. Pensamos nos prisioneiros de Guantanamo? O que dizem os média acerca deles? De vez em quando espreitam, dá uma pequena nota na página 6. Foram confinados a uma terra de ninguém de onde provavelmente nunca regressarão. Neste momento, há alguns que estão em greve da fome, alimentados à força, e alguns são britânicos. Não há delicadeza nesta alimentação forçada. Nem sedativos nem anestésicos. Só um tubo enfiado pelo nariz e que vai atè à garganta. Vomita-se sangue. Isto é uma tortura. O que dizem os Negócios Estrangeiros britânicos acerca disto? Nada. O que diz o primeiro ministro britãnico? Nada. E porque não? Porque os EU disseram: criticar a nossa acção em Guantanamo é um acto hostil. Ou estão connosco ou contra nós. E, portanto, Blair cala-se.
A invasão do Iraque foi um acto de banditismo, um acto de terrorismo de estado, demonstrando um total desprezo pela noção de lei internacional. A invasão foi uma acção militar sustentada por uma série de mentiras, enorme manipulação dos media e por conseguinte do público; um acto que deveria consolidar o domínio militar e económico da América no Médio Oriente disfarçado em ultima instância de libertação – uma vez que todas as outras justificações ruiram. Uma formidável asserção de força militar responsável pela morte e mutilação de milhares e milhares de inocentes.
Levámos tortura, bombas de fragmentação, urânio empobrecido, matanças cometidas ao acaso, miséria, humilhação e morte e chamamos a isso “levar ao Médio Oriente a liberdade e a democracia”.
Quantas pessoas é preciso matar até se ser qualificado como um assassino de massas e um criminoso de guerra? Uma centena de milhar? Mais do que o necessário, julgaria eu. Por isso creio que é justo que Bush e Blair sejam levados ao Tribunal Internacional de Justiça Mas Bush foi esperto. Nunca ratificou o Tribunal Internacional. Por isso, se alguma vez um soldado americano ou melhor ainda um político alguma vez estiver no banco dos réus, Bush disse que enviaria os marine. Mas Tony Blair ratificou o Tribunal e está assim sujeito a um processo. Podemos dar a sua morada ao Tribunal, no caso de estarem interessados. É o número 10 da Downing Street, London.
Neste contexto, a morte não tem qualquer importância. Quer Bush quer Blair conseguem muito bem passar ao seu lado. Já pelo menos 100.000 Iraquianos foram mortos por bombas e mísseis americanos – e antes de ter começado a revolta iraquiana. Essas pessoas não são de tempo nenhum. As suas mortes não existem. Nada são. Nem sequer são lembradas como mortas. “ Não fazemos contagem de corpos”, disse o general americano Tommy Franks.
Mal começou a invasão, surgiu na primeira página dos jornais briânicos uma fotografia de Tony Blair dando um beijo a um menino iraquiano. “Uma criança agradecida”, dizia a legenda. Dias depois havia uma história e uma fotografia, numa página interiror, de um outro menino de 4 anos sem braços. A família fora dizimada por um míssil. Ele é o único sobrevivente. “Quando é que volto a ter braços?”, perguntava. E a história foi esquecida. È que Tony Blair não estava com ele ao colo nem tinha ao colo nenhuma outra criança mutilada, nem nenhum cadáver ensanguentado. O sangue é sujo. Suja a camisa e a gravata e é preciso um discurso sincero na televisão.
Os 2.000 mortos americanos são um embaraço. São transportados para os seus túmulos durante a noite. Os funerais fazem-se na maior discrição, em lugares seguros.
Os mutilados apodrecem nas camas, alguns para o resto das suas vidas. E assim mutilados e mortos apodrecem todos, em diferentes espécies de túmulos.
Eis uma passagem de um poema de Pablo Neruda:
E uma manhã tudo o que ardia
Uma manhá as queimadas
Levantaram-se da terra
Devorando os seres humanos
E deste então foi o fogo
A pólvora desde então
Foi o sangue.
Bandidos com aviõe e mouros
Bansdicos de aliança e duquesas
Bandidos com monjes negros que os benziam
Vieram pelos céus para matar crianças
E o sangue das crianãs correu pelas ruas
Simplesmento, como o sangue das crianças.
Chacais que os chacais desprezariam
Pedras em que até os cardos secos cuspirim
Viboras que as viboras abominariam
Cara a cara contigo tenho visto o sangue
De Espanha levantar-se como uma maré
Que te arrasta numa vaga
De orgulho e facas.
Traiçoeiros
generais:
vede a minha casa morta,
vede a Espanha quebrada:
de cada casa corrre metal fundente
em vez de flores
de cada fenda de Espanha
surge a Espanha
mas de cada criança morta levanta-se uma espingarda com olhos
mas de cada crime nascem balas
que um dia hão-de encontrar
o lugar dos vossos corações.
E perguntam; porque não fala a sua poesia
De sonhos e plantas
E dos grandes vulcões da sua terra natal.
Venham ver o sangue nas ruas.
Venham ver
O sangue nas ruas
Venham ver o sangue
Nas ruas!
Que fique bem claro que ao citar este Neruda, não estou de modo algum a comparar a Espanha Republicana ao Iraque de Saddam Hussein. Cito Neruda porque em mais nenhuma poesia contemporânea consegui eu ler uma tão poderosa e visceral descrição do que é um bombardeamento de civis.
Disse antes que agora os EU já são totalmente francos ao atirarem as cartas para a mesa. É assim mesmo. A sua política oficial define-se como um “’full spectrum dominance’. ( domínio total em todas as frentes). Os termos não são meus, são deles. E ‘full spectrum dominance’ significa domínio da terra, mar, ar e espaço e de todos os bens neles existentes.
Os EU ocupam hoje 702 instalações militares espalhada pelo mundo em 132 paises, com a honrosa excepção da Suécia, claro. Não sabemos como conseguiram chegar lá, mas que lá estão, lá isso estão.
Os EU possuem 8.000 ogivas nucleares activas e operacionais. 2.000 estão em alerta máximo, prontas a serem lançadas em 15 minutos. Estão a desenvolver novos sistemas nucleares chamados “bunker busters” ( destruidores de bunkers). Os britânicos, sempre cooperantes, tencionam substituir o seu próprio missil nuclear, o Trident. Quem, pergunto-me eu, querem eles atingir? Osama bin Laden? Tu? Eu? O Zé da esquina? China? Paris? Quem sabe? O que sabemos é que esta insânia infantil – a posse e a ameaça ao recurso de armas nucleares está no próprio coração da actual filosofia política americana. Temos de nos lembrar que os EU estão em permanente pé de guerra e não se vê sinais de que isso abrande.
Muitos milhares, se é que não milhões de pessoas nos próprios EU, estão manifestamente cheios de vergonha e irados contra as acções do seu governo mas de momento ainda não são uma força política coerente – de momento. Mas a incerteza, a ansiedade, o medo que vemos diariamente crescer nos EU não parece ir diminuir tão cedo.
Sei que o Presidente Bush tem muitos autores dos seus discursos extremamente competentes. Mas eu gostava de me candidatar também a esse lugar. E proponho esta breve alocução que ele pode fazer à Nação através da Televisão. Vejo-o com um ar grave, cabelo muito penteado, sério, combativo, sincero, às vezes encantador, com um sorrisinho forçado, com certo poder de sedução, homem comum entre os homens comuns.
‘ Deus é bom. Deus é grande . Deus é bom. O meu Deus é bom. O Deus de Bin Laden é mau. É um mau Deus. O Deus de Saddam era mau, só que ele não tinha nenhum.. Era um bárbaro. Nós não somos bárbaros. Não cortamos a cabela das pessoas. Acreditamos na liberdade. E Deus também acredita. Eu não sou um bárbaro. Sou o chefe democraticamente eleito de uma democracia amante da liberdade. Somos uma sociedade tolerante. Damos electrocução tolerante e injecções letais tolerantes. Somos uma grande nação. Não sou um ditador. Ele é. Não sou um bárbaro. Ele é. E ele. Eles todos. Eu tenho autoridade moral. Vês este punho fechado? É esta a minha autoridade moral. E não se esqueçam disso.”
A vida de um escritor é uma actividade muito vulnerável, quase nua. Não vamos ter pena dela. O escritor escolheu isso e mantém-se aí. Mas é verdade dizermos que fica exposto a todos os ventos, e alguns são glaciais. Está-se realmente sozinho. Sem amparo. Sem protecção – a menos que se minta, e terás com isso construído a tua protecção, e poderíamos passar a dizer, tornaste-te político.
Já esta noite me referi várias vezes à morte. Vou então ler-vos um poema meu chamado Morte
Onde foi o corpo morto encontrado?
Quem encontrou o corpo morto?
Estava morto o corpo morto quando foi encontrado?
Como foi o corpo morto encontrado?
Quem era o corpo morto?
Quem era o pai ou filha ou irmão
Ou tio ou irmã ou mãe ou filho
Do corpo morto e abandonado?
Estava morto o corpo quando foi abandonado?
O corpo foi abandonado?
Por quem foi ele abandonado?
Estava o corpo morto nu ou vestido para viagem?
O que te fez declarar morto o corpo morto?
Declaraste morto o corpo morto?
Conhecias bem o corpo morto?
Como soubeste que o corpo morto estava morto?
Será que lavaste o corpo morto
Será que lhe fechaste ambos os olhos
Será que enterraste o corpo
Será que o deixaste abandonado
Será que beijaste o corpo morto
Quando olhamos um espelho, pensamos que a imagem à nossa frente é exacta. Mas basta movermo-nos um milímetro e a imagem altera-se. Aquilo que estamos realmente a ver é uma série infindável de reflexos. Mas às vezes o escritor tem de quebrar o espelho – porque é do outro lado do espelho que a verdade nos espera de frente.
Estou convicto de que, a pesar dos inúmeros obstáculos que existem, nós, cidadãos, com uma feroz determinação intelectual, inquebrável, sem desviar, conseguiremos definir a verdade real das nossas vidas e das nossas sociedades – e essa é uma obrigação crucial que nos diz respeito. É de facto obrigatória.
Se essa vontade não estiver incorporada na nossa visão política, não tenhamos esperança de restaurar aquilo que já quase se perdeu para nós – a dignidade do homem.
7 de Dezembro 2005

Tradução de Jorge Silva Melo

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