III- estátua, gesto som
1
alguém canta, se adormeço entre rosas;
alguém canta, se o mármore amadurece
por dentro da vertical cegueira do sangue
e se recolhe no tímpano; e,
alguém canta se, subitamente,
o silêncio é uma fatalidade musical,
e o pó, esse fruto semeado entre os dedos,
ainda inclinados sobre a pedra,
aguarda o florescer da manhã
entre a carne palpitante do peito
e a friíssima sede do cinzel auscultando o coração
de quem canta rodeado de noites
e semeado das nocturnas pétalas do pó
2
enquanto o pó não floresce por dentro
do movimento do sangue, e os braços
de quem dorme dentro da pedra
apenas se erguem inutilmente
para uma negra solidão de metáforas,
o poeta fecha-se num quarto escuro,
o poeta fecha-se dentro da pedra, e espera
pela perfeita coincidência da mão e do gesto
e da água e do fruto; o poeta espera, inclinado
justamente sobre o vértice da água guardada
nas ânforas das imagens;
o poeta sabe que toda a água é perpendicular
à verticalidade desse gesto
que escreve sempre as últimas coisas
3
o poeta sabe
que todo o deus é um paradoxo formal.
o poeta sabe que o que o poema diz são
os lentos braços de mulher desse deus
repartindo as águas diante da pétrea fronte
coberta de pó.
água!, quem canta clama por água,
alguém sempre ama o seu metafórico som,
quando embate na oblíqua pedra escarlate do peito.
diz-se água dentro da noite, e as ânforas do verso transbordam
no crescente das luas das imagens incitadas às enseadas
dos dedos segurando o cinzel.
mas água!, o sangue pesa,
e toda água é levíssima,
como se cantasse perpetuamente;
toda a água é a coincidência do som e do gesto
na oblíqua brancura musical de um ofício
de esculpir o negrume que medeia pupila e pulso,
coração e tímpano; toda a água estremece
neste ofício de se saber uma ferramenta musical
4
o pulso, rodeado de água negra,
o pulso, fonte e clareira do movimento. o pulso recolhe
o dilúvio da epiderme do som, quer a pele e a sede
desse mármore;
o pulso, que segura o cinzel, o pulso
é o naufrágio de uma cega leveza sonora de metáforas
a prumo no aprumo do canto escrito no pó semeado
à tangente do lábio lírico.
é depois uma, a primeira, sempre aquela palavra
que dissemina as águas, e que é a ascese
lunar da sombra através das ancas da fêmea em pranto
perante o pathos das imagens estilhaçadas
pelo movimento que as inicia; é sempre
essa palavra que fica – essa palavra que
é sempre a loucura do mínimo
5
poema: escarlate e pétrea geografia do tumulto,
vertical ascese lunar da sombra e da água negra
do verbo contornando as penínsulas dos dedos,
e instigando as enseadas do sangue
ao lítigio dos promontórios das imagens,
aliciando o golfo do coração
e a ancestral paisagem da memória,
à queda a prumo no aprumo
de cantar tudo o que não se pode cantar;
poema, horizontal leito, sono em que se estremece, sempre
que alguém canta o solar destino de todo o canto,
sempre que alguém canta o que não se pode cantar
6
e, não se pode cantar essa mulher feita de penumbra
que cresce por dentro dos versos, essa água negra
que devora as imagens desde o fulcro do gesto
dos dedos inclinados sobre a brancura da página
à cova de seda vermelha do coração; não se pode cantar
o rosto dessa mulher, que é uma escarpa de vidro recolhendo
os prodígios, amalgamando os meridianos da ordem
e propiciando a coincidência da escuta e da pupila,
e a catarse dos anjos (essas metáforas) enrodilhados
diante do coração da visão; não se pode cantar
esse anjo de penumbra que germina entre os umbrais
dos braços cingidos por uma elipse de lume
7
e, não te posso cantar a ti (imagem),
que me costuras um anjo de pó na fronte, se as ânforas do verso
vertem as marmóreas madrugadas do canto
através da rosa aberta da casa onde te deitas comigo,
e se fico submerso de memória e água até ao coração,
e sucumbo a esse levíssimo peso da lua cingida pelas ancas;
não posso cantar a casa,
essa rosa onde me pões a pedra sobre o coração;
e, repito, não posso cantar a casa,
a clareira de todo o movimento do mundo,
o radial espaço da permanência; não posso cantar,
sem que a água negra brote dos buracos líricos da pedra;
não posso cantar o mais mínimo destino
8
apenas posso cantar as imagens. apenas posso cantar
imagens de imagens; tão só posso cantar
o invisível movimento das imagens, sem fixar a rosa
no cume das águas erguidas a prumo até onde nada se vê.
porém, entre o movimento do cinzel, a invisibilidade do mundo,
a escuridão da água rasa em torno dos olhos
e o florescimento do pó, sei que
o poema, esse gesto antiquíssimo, sei que o poema dirá
o enorme talento dos minerais, e que tu, imagem do meu sono
nos interstícios das coisas, tu, estátua, tu
havias de dizer as metáforas todas enfileiradas, de rosto voltado
para a penumbra do pó semeado entre os dedos;
e sei que tu haverás de dize-las,
por fim, maduras para a escuta de todos os líquidos perecíveis
e do coração do pó estremecendo onde
o gesto coincide com o som,
sei que tu haverás de dizer o lugar
onde as imagens sempre se detém para ouvir
a íngreme loucura do coração, o lugar onde
finalmente o mármore amadurece
na epiderme da escuta em que o poema ressoa
através do imóvel tímpano da pedra
9
hei-de cantar que no poema as imagens
são essas rosas de mármore semeadas no flagelo
que as mulheres costuram ao peito
cada vez que cantam no sono de quem
imagina por gesto e música o ocluso coração da pedra,
de quem sabe que as imagens são
também a floração mineral do sangue
entre os dedos auscultando
o sono e o branco coração
do pó
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
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